O Notável das Fronteiras
- Anima Animus
- 26 de set. de 2023
- 5 min de leitura

O Grande Kilapy, filme estreado em 2012, foi mais um reforço da carreira de sucesso de Zezé Gamboa, um grande cineasta angolano, reconhecido internacionalmente, colecionador de diversos prêmios da sétima arte em inúmeros festivais, como em Dubai e Coimbra. A obra de ficção, apesar de negar basear-se em fatos reais, foi ambientada no contexto da guerra de independência de Angola dos anos 1960 e 70 e parece alcançar um acentuado grau de fidelidade à situação social da época. Ainda que o protagonista, Joãozinho, seja fictício, seu trânsito pelos mundos angolano e ibérico, retratam com a leveza humorística a brutal estrutura racista e fascista, saturando todos os aspectos do cotidiano. Negros e brancos chocavam-se diariamente nas várias relações travadas seja na capital metropolitana ou na cidade natal do personagem principal, Luanda. O humor parece ser uma estratégia eficaz para refletir sobre situações dramáticas e feridas abertas, tornando-as de certa forma palatáveis, apesar de sempre indigestas.
Antes de iniciar a primeira cena do longa, o primeiro elemento que salta aos olhos é a multiplicidade de patrocinadores, incluindo diversas nacionalidades, como o Brasil, a União Européia e a própria Angola, sendo o ator principal, o baiano Lázaro Ramos. Outra coincidência interessante é o apoio do banco de Angola associada ao fato do pai do protagonista trabalhar em um banco de Luanda. Isso coloca João Fraga inserido na chamada categoria dos “evoluídos”, ideia difundida em muitos países de África nesse período. Os evoluídos, eram justamente aquele grupo minoritário entre os africanos, também conhecidos como assimilados por dominarem os códigos culturais dos meios letrados metropolitanos e comportarem-se de modo similar aos próprios colonos brancos. Formavam uma espécie de pequena burguesia, associada às cidades com crescentes aspirações ao poder. Após estudarem nas universidades europeias, muitos destes africanos em contato com as ideias comunistas/socialistas e influenciados pelo ideário de liberdade sugeridos pela ONU e pela Carta do Atlântico, retornavam aos seus países de origem dispostos a derrubar o regime colonial e suas diversas facetas.
Joãozinho era exatamente um desses africanos que foi estudar numa universidade europeia, no caso Coimbra com objetivo de ascensão social. Ele formou-se em engenharia e passou a disputar cargos e espaços reservados aos brancos pelo sistema vigente. O personagem não era nenhum exemplo de homem engajado na luta política de seu país, mesmo assim a posição de neutralidade parecia impossível, principalmente quando o próprio fato dele frequentar os espaços “tipicamente” brancos constituía uma verdadeira afronta ao sistema racista. Sua existência, enquanto um negro de posses “virava o mundo de cabeça pra baixo” na fala de um dos personagens brancos. Ser quem ele era constituía um ataque aos principais paradigmas daquelas sociedades, questão que se agravava pelo seu gosto e sucesso com as mulheres brancas. O grande Kilapy ocupava um lugar que “não podia” ser dele, contrariava as “leis” naturalizadas do racismo e por isso precisava ser extirpado a qualquer custo, um verdadeiro corpo estranho infectando aquele meio higienista.
Todo o filme é uma tentativa incansável dos poderosos brancos, aliados à polícia política portuguesa de derrubar aquele negro de sua posição proeminente. Estão sempre perseguindo seus passos, obstinados em incriminá-lo, enquanto invejam perplexos sua movimentada vida sexual com as belas mulheres brancas. Como alguém fora dos paradigmas europeus de beleza, muitas vezes visto como macaco, poderia atrair as mais “belas mulheres civilizadas”? A questão de gênero também aparece, permeando as peripécias do Don Juan angolano que mesmo sofrendo a opressão racista não deixa de reproduzir comportamentos machistas e um certo desejo não declarado de branqueamento. Afinal, João era um mestiço, identificado como negro que identificava-se em alguma medida com o mundo branco, um sujeito híbrido para utilizar a expressão de Stuart Hall.
Esses complexos processos de identificação em um contexto tão conturbado criavam um ser que transitava com dificuldades entre dois ou mais mundos, um ser vivendo em incômodas fronteiras socias tão bem definidas quanto amalgamadas. Joãozinho transitava entre acessos e interdições e precisava utilizar sua astúcia com frequência para sair de situações complicadas. Os relacionamentos sexuais e amorosos, as amizades e o conjunto de relações sociais cujas teias intrincadas sempre extrapolam nossos círculos íntimos eram fontes de constantes dores de cabeça para o galã trapaceiro.
Os relacionamentos sexo-amorosos dão a tônica do filme e não podia ser diferente em se tratando de um Dom Juan. Eles são exemplos interessantes das permeabilidades do sistema, do trânsito entre fronteiras que se reafirmam ao mesmo tempo que se dissolvem. O desejo, a atração, o afeto não são capazes de destruir uma estrutura com preconceitos tão entranhados, no entanto são capazes de confundir convenções, perturbar falsas estabilidades e incomodar profundamente os atores que procuram em vão evitar a entropia do sistema. O caos sempre assusta os adoradores da ordem. O caos desorienta e abre possibilidades inauditas, do mesmo modo que a destruição pode significar novos começos.
A obra de Gamboa faz alusões significativas ao papel da arte como força de oposição ao regime fascista. Em mais de uma cena a música figura como protesto explícito ou velado, prontamente reprimido pelos agentes policiais do Estado. Estes agentes causam variados constrangimentos ao Kilapy. Uma cena notável, retrata Joãozinho abordado após descer de um avião particular, símbolo indiscutível de riqueza, o qual não impede a violência “simbólica” cometida pela PIDE que o obriga a despir-se de seus ricos trajes em público como se aquela distinção social de um negro fosse insuportável para suas estreitas mentalidades.
Kilapy significa trapaceiro, uma espécie de malandro e o título justifica-se a partir dos golpes perpetrados por João Fraga nas contas públicas, facilitado por sua posição profissional, ou seja, por fazer parte da burocracia estatal. Não por acaso, um dos principais meios de ascensão para os ditos evoluídos ou assimilados. A malandragem do Don Juan e Bon Vivant termina por render bons frutos, seja na forma de fortuna antes da independência de Angola, seja no alto status social conferido ao grande Kilapy após a independência. Ele havia sido preso pelas forças repressivas após a descoberta de seu esquema fraudulento, mas as trapaças durante o período colonial lhe garantem um inesperado final feliz ao ser solto junto aos presos políticos e ser identificado com os mesmos como um dos heróis nacionais que teria atacado o regime através de seus golpes financeiros.
Para finalizar é interessante notar o que poderia ser chamado de resistência passiva encarnada pelos pais de Joãozinho, nomeadamente pelo pai. Apesar de parecer à primeira vista apenas um assimilado e acomodado pelo regime colonial, ele aos poucos demonstra uma intensa insatisfação contida com aquela realidade. Uma insatisfação expressa por silêncios que são na verdade silenciamentos; expressa pela escuta sorrateira da radio revolucionária associada ao MPLA. Ele torcia secretamente pela vitória dos guerrilheiros, enquanto aconselhava seu filho a evitar atritos com as autoridades. A sua luta que pode ser considerada covarde por muitos ou simplesmente inexistente poderia ser entendida na sua disposição em aproveitar as brechas do sistema para ascender socialmente, e não só proteger como proporcionar um maior conforto para sua família. A aparente bajulação do seu chefe branco na instituição financeira não significava de modo algum uma aceitação daquela neocolonização e tudo que ela representava.
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